miércoles, 26 de mayo de 2010

A PRÉ-HISTÓRIA DA FLOR DE INSENSATEZ

Há muitos anos atrás viviam entre blocos de apartamento uma população ordeira e amante da segurança que os almanaques de história e seus geniosos compiladores denominaram com a perícia de quem faz a arquitetura de uma cidade inteira de Planificados. Os Planificados, ou às vezes também chamados de Homens do Plano, eram divididos por quadras, por asas e por um enorme eixo onde eles corriam de uma quadra a outra com suas máquinas pessoais de fazer fumaça. Sempre perto de onde moravam Planificados, havia uma panificadora, alguns salões de beleza e muitas drogarias. Os salões de beleza indicam aos zelosos investigadores deste Povo Plano que as pessoas gostavam de cuidar de como pareciam; talvez houvesse inspetores de aparências que circulavam em todas pelas entre-quadras, mas mais provável é que cada Planificado atuava como um inspetor certificado das aparências de si e dos outros. Já as drogarias pareciam ser centrais na vida dos Planejados; ali as pessoas adquiriam satisfação, contentamento e bem-estar e a recente etnologia das comunidades Planejadas nos permite dizer que ali era onde os Planificados se tornavam Planificados: ali eles recebiam ungüentos que os fazia seguir fazendo fumaça pelo enorme eixo, entre as quadras e fazendo a inspeção das aparências.
No meio desta paisagem às vezes inóspita, às vezes condescendente começaram a surgir as primeiras sementes da Insensatez. Estas sementes, ziquiziras sem lé com cré no meio do Planejamento eram quase imperceptíveis, eram como filhotes de ácaros no carpete do gabinete do Ministro da Defesa, eram como as gotas de orvalho que caem em um lago cercado por mansões, eram como pessoas autônomas que se esbarram em um edifício comercial dilapidado. Estas sementes poderiam crescer e se transformar em uma floresta toda insensata, mas poderiam ter sido secas pelo sol e esturricadas. E elas viraram apenas uma flor.



OUTUBRO DE 2005

O figurante jogava sal grosso pela sala e se arrastava por entre os nacos grossos. Terminou com várias pedras na boca.
Na tihuana da sanidade

Quase.
No espaço entre os pensamentos¬¬ – o buraco escuro e lento
Entre os cinco mil sentidos, os 6 bilhões de mal-entendidos
Dê-me um verso de apoio
E moverei um poema até levá-lo ao abismo
Ou até a beira dos teus lábios
Me perseguem os braços flácidos e apodrecidos dos sábios
Persigo com os dentes a lucidez
das garras de lúcifer
pelas ruas escuras de dentro de mim.
Milhas de medo, calçadas de insensatez, nada me detém:
Quero ser mais um napoleão sem império
Em vez de homem sério sem direção.
Não ligo mais para as nascentes de onde brotam minhas fúrias
Que elas me asfixiem.
Sinto só o desejo, feito a pauladas, de reinventar tudo.

Reinventar a composição química da terra, reinventar meus olhos.
Sinto a vontade de abrir a mão, de abrir a mão de todas as minhas esperas.
Abrir mão da saliva, do muco, do suor, da lama, da remela, da poeira, da água estagnada.
Da gordura.

O homem mais feio do mundo
olha cansado os fundamentos de tantos impedimentos
e cata torrões de sal.
O homem mais frio do mundo
olha cansado as intenções de tantas humilhações
e cata torrões de sal.
O homem mais frívolo do mundo
olha cansado a contradança de tanta desconfiança
e cata torrões de sal.
O sal no chão é como a poeira no céu.
O mel sabe a sal; meu eu sabe que é só; o que é meu sabe que é pó.

Fico confuso com as batidas do meu coração,
envolto de sal. Esparramo minhas sêdes sem sede
Atropeladas pela velocidade
Enjauladas sem possibilidades
Em um continente parafuso-solto
Todo dia na Tihuana da sanidade
O lado colorido e obscuro da minha América
Meu continente encabulado de ansiedade
Meu continente por um triz.
Meu continente na fronteira
Terra batida, marretada
Alma dilapidada, seduzida
Meus olhos cobiçam a insensatez
Que se acabe de uma vez minha terra arrasada
Meus pés querem o avesso da conquista:
um continente levantado do chão.
Minha cabeça pensa com a inveja de quem me anexou.

Quero estar com esta pedra, como estou com o meu coração.
Mas a cada passo a frente fica mais difícil voltar atrás.
O mal calçou perfeitamente em mim
Como uma perversa certeza
Meus olhos viram como o rancor
Preso em todas as coisas. Tudo
Se retorce
Como a boca das gentes
Se vão a colher da minha mesa, minha mesa, minha casa,
as ruas, a cidade, minha pátria
E eu fico só,
cada dia, perto dos porcos, abraçado
a esta pedra que não ama.
Por isto eu choro e me contorço diante de ti. Dá-me
Do teu infinito ar de saúde,
Cura-me. Mas não totalmente
Deixa-me um fio do cabelo do demônio no olhar
O mundo
Merece suspeita
Sempre.

Minha insanidade imperfeita
Minha destemperança incompleta
Meu descontrole limitado
Minha loucura desconfiada
Ergo olhos para o céu––olhos que a terra come.

Não te machuque a minha ausência, meu Deus
Quando eu não mais estiver na terra
Onde agora canto amor e heresia
Outros hão ferir e amar
Seu coração e corpo. Tuas bifrontes
Valias. Mandarim e ovelha. Soberba e timidez.

Não temas
Meus pares e outros homens
Te farão viver destas duas voragens
Matança e amanhecer, sangue e poesia

Chora por mim, pela poeira que fui
Serei, e sou agora. Pelo esquecimento
Que virá de ti e dos amigos
Pelas palavras que te deram vida
E hoje me dão morte. Punhal, cegueira.

Sorria, meu Deus, por mim. De cedro
De mil abelhas tu és. Cavalo-d´água
Rondando o ego. Sorri. Te amei sonâmbula
Esdrúxula, mas te amei inteira.

E é difícil te amar inteira
É sempre mais difícil ancorar um navio no espaço
Exatamente meu peito está superlotado.


Na tihuana da sanidade vivem as pessoas que nasceram, comeram e cantaram nestas terras colonizadas, recolonizadas e devassadas pelas ordens de cima e que caíram de amores por quem colonizou, recolonizou e devassou suas terras. Um amor não-correspondido e alucinado.

OUTUBRO DE 2005

Também foi o tempo da artesupranaturaldosjardins. Os jardins são nossas tentativas de ter um rincão da natureza regado e podado para chamar de nosso. É como quando depilamos as pernas, raspamos os pelos da cara ou embaixo dos braços, ou quando arrancamos fora pedaços de carne que estão no lugar errado. Corpos também são jardins. Cultivar o quinhão de natureza através da qual nós afetamos o resto do mundo: com o nosso corpo podemos afetar a natureza. Cultivar um jardim é também afetar a nós mesmos. Cultivar um corpo é também cultivar nossas capacidades afetivas, nossas capacidades expressivas, nossas capacidades de pensamento. Nosso corpo, biógrafo não-autorizado, é também o depósito de afetos, cultiva-lo é também um cuidado com aquilo que nos faz sermos o que somos. Candide replica a Pangloss, não basta deixarmo-nos largados à sorte, mesmo que estejamos no melhor dos mundos possíveis, é preciso que façamos alguma coisa de nossa parte: cultiver notre jardin.


Bailarina Laura Figurante Hilan
A natureza, que governa por decreto,
tem caprichos, birras e desígnio secreto.
Quer todas as coisas ao alcance das garras;
as quer títeres, lacaias ou escravas.
Carregando pedras, no ombro ou na cabeça;
para que ela deleite, se enoje ou se aborreça.
A natureza, dedicada à filantropia,
te enfeita, te distrai e te faz companhia
é casa sem portas, sem trincos, sem muros
sem garantias e nem hipotecas, nem juros.
Põe-te a morar na sacada de uma janela
sempre aberta. E fica sendo tua sentinela.

A natureza, despótica majestade,
jamais consulta, receia ou tem piedade.
Os sonhos grandes mata sempre de um só golpe,
ou estraçalha sob pretas patas no galope
de outros sonhos, ralos, fracos, subordinados,
pequenos pesadelos, pelos ventos espalhados.
A natureza, feita de barro de utopia,
inventa alternativas verdes a cada dia,
alheia a tua rotina e surda para as ofensas,
ela espera quieta nos temas que pensas.
Sabe que é todo maior que qualquer parte
e traz para si tudo o que afirma a arte.
A natureza, intocável, mas sempre tirana,
não explica o que faz, se repete, sempre insana.
Governa com leis frígidas e estrangeiras
que esmagam a cada dia criaturas inteiras.
Surda autoridade, seus dentes não falam: mordem.
Em silêncio, ela esconde caos atrás da ordem.
A natureza, que não pede só concede
é tua matéria prima, teu corpo, tua sede.
É matéria-mãe, tia, netos e sobrinhos
e para cada vez que não encontras teus ninhos,
ela faz uma fruta ou erva espasmódica
e para teus humores dá a tabela periódica.

A natureza, ditadora caprichosa,
cria meios sem fins, como a pétala na rosa.
Pequena folha sinuosa que murcha ou voa
aparece, balança, fenece, sempre à toa.
Nem sabe, a astuciosa, o que persegue
por toda porção de pó a ela entregue
A natureza, de que é feito todo cuidado
enche o planeta de vale, monte, prado;
faz o vento pôr fogo de vez em quando
para que não te apegues ao teu mando.
A natureza, que nunca te abandona,
não te esquece, é pastora, nunca é dona.

A natureza invade, ocupa, espalha o terror.
Não aceita argumento, arranca o caule e a flor.
É agente secreto em teus foros mais íntimos;
massacra tuas certezas, teus desejos ínfimos.
Encurrala o que sentes e nas pedras o mar.
Dita o que pensas e quando paras de pensar.
A natureza, alheia a teus mal-tratos
aceita que digas que é dela os teus fatos,
decora tua injustiça e tua indiferença
e te mantém por anos longe da doença;
ela empresta-te tudo sem cartório
o ar para que vivas e o jasmim, o acessório.

A natureza, que vem em hordas visigodas,
amordaça no tempo tuas pretensões, todas.
Derrete os continentes, seca as cachoeiras,
entope-te de vontades ainda que não queiras.
Enruga a tua pele, desbota todas as tuas idéias.
Derrete todas as almas, as crentes e as atéias.
A natureza, fada madrinha de prontidão
tem horror ao vácuo, nada deixa em vão
te descansa, te enxágua, te purifica
em forma de melão, noz ou mixirica
sopra em teu corpo núvens de segundos
que às vezes erguem para ti dias fecundos.

A natureza que age de olhos fechados,
trucida os ossos dos animais assassinados.
Enlaça as certezas puras nos teus instintos
e cada dia enfia a tua esperança em labirintos.
Escraviza-te com desejos que são só dela
e arranja que sua verde mandíbula aches bela.
A natureza, pão, prato, toalha e mesa
solta o predador mas cuida da presa.
Ela não se aborrece, não se irrita
e todo dia brota ou arranja coisa bonita.
Nunca cansa, a natureza, de te dar ar
e quando sofres, dá-te água para chorar.


A natureza, que nunca faz inquérito,
pune todas as coisas com culpa ou mérito.
Arrebenta as amarras que antes erigira,
amassa, massacra, sem que ninguém interfira,
resseca as folhas, os córregos e a vida.
Dona da lei, fica solta, nunca é punida. A natureza, origem de todo estupor,
faz a ti, teu chão e é teu fio condutor.
Produz possibilidades mesmo que não vejas
e deixa crescer mangas perto das tuas igrejas.
A natureza que nunca te pede a passagem
é também o caminho, o comboio e a viagem



DEZEMBRO DE 2005, NA PRAÇA

DIGA:
seu nome
sua parte do corpo favorita
seu gesto favorito
qual a música da lista você mais gosta

GANHE:
um poema
enviado para sua casa
uma dança
enviada diretamente para seus olhos



MÚSICAS

1- Caminho das Águas /Maria Rita – MPB
2- Águas de Março – João Gilberto – bossa nova
3- Bamboleio – Frank Aguiar – POP latino
4- Berreco – Claudinho e Bochecha – FUNK
5- Reggae das Águas – Chiclete com Banana – Axé
6- Como uma onda – Lulu Santos – Rock
7- Esquadros- Adriana Calcanhoto – MPB
8- Malandragem – Cássia Eller – Rock
9- Marancangalha - Dorival Caymmi
10 - Maracatu Eletrônico - Mangue Beat
11 – Funk do Mensalão – Colibri CPI – FUNK
12- Meu vício é você – Alcione – samba
13- Negue – Maria Bethânia – MPB
14- Atrás da verde rosa só não vai quem já morreu - samba enredo
15 – Samba da Solidão – Paulinho da Viola – samba
16 – Boladona – Tati Quebra Barraco – FUNK
17 – You Learn – Alanis Morisetti - POP



VIRADA DE ANO

As sementes foram levadas para perto da Caixa-Prego, em Itaparica para ver se nasciam. Jardinaram as sementes duas almas encorpadas planificados e completamente inacabadas, perdidos em ondas quentes no meio de vatapás, sorvetes de coco, 15 ou vinte mangas do pé. Somos todos grupelhos. Quando caía a noite, em uma casa brasileira, longas soirées Oropa, França e Bahia botavam cara-a-cara uma veneziana de Puglia que amava a Bahia desde que ouviu o décimo-sétimo acorde de João Gilberto quando passou por aquela palmeira na estrada (justamente aquela, que é toda especial) e um parisiense que abrasileirou-se criancinha e que odiava a Bahia. Amor, ódio, mangas, dendê, ondas e mais umas cinco ou seis haecceitas desta data frutificante e, pronto, já debaixo da terra germinou uma flor. Toda coração mais insensato. Toda in credo in cruz, virgi maria. Mas tem o seguinte: as pretas velhas não mentem não senhor.

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